CAPITULO 3
Ela caiu na estrada com as mãos no volante do jipe com tração nas quatro rodas que adquirira na semana anterior. Quando fechou a porta do apartamento e entregou as chaves ao representante da imobiliária, sentiu uma estranha sensação de perda... Não era mais seu... Outras pessoas iriam residir ali, outras histórias seriam construídas naquele que fora seu lar nos últimos anos... Mas quando começou a sentir o vento fresco soprando diretamente em seu rosto pela capota arriada do jipe, sentiu uma energia renovada e tudo aquilo, apartamento, hospital, cidade grande, ficaram para trás... No passado... Um passado distante...
Inesperadamente as lembranças daquela noite a algumas semanas atrás encheram e ocuparam a sua mente, aqueles pensamentos foram capazes de colocar suas idéias em turbilhão, sentiu o sangue correr acelerado, como se quisesse disputar corrida com seu veículo... Por um pequeno lapso de tempo sentiu tudo rodar a sua volta e toda a paisagem descortinada a sua frente sair de foco. Respirou fundo e fez um esforço enorme para retomar o foco, precisava manter a mente atenta se não quisesse provocar um acidente...
Mas antes de arquivar aquelas lembranças no porão de sua memória saboreou um pouquinho mais o prazer que elas lhe proporcionavam. O poder de sentir um homem completamente rendido aos seus encantos, de tê-lo dominado pelo desejo de possuí-la. Sabia que naquelas poucas horas que passaram juntos ela poderia ter conseguido tudo o que quisesse, detinha o poder! Matheus lhe daria o mundo, subiria até o céu e roubaria as estrelas para depositar aos seus pés, tinha consciência de que ele seria capaz de transgredir todas as leis e se colocar em perigo somente para satisfazê-la. Pode perceber pelo brilho febril em seus olhos quando ele a possuía, no murmúrio e nos gemidos abafados que a satisfação do gozo libertaram. Naquela noite ele fora seu plenamente. Sentia-se realmente poderosa como uma fada tecendo encantamentos eróticos capazes de levar um homem a loucura.
'-Esqueça isto, passado... Agradável, mas passado! Vamos garota, vida nova!'
***
Nova Esperança era uma cidade pequena. Era curioso como o nome refletia seu estado de espírito. Coincidência? Destino? Não sabia se acreditava nestas coisas, a vida apenas seguia seu curso... Ainda assim não deixava de ser curioso, estava realmente ganhando nova esperança! Fora mesmo curioso à forma como tudo se desenrolara. Há um ano, estava se sentindo enfadada, cansada, desmotivada. Uma viagem para casa dos pais, à pista molhada por um pouquinho de chuva, uma pequena distração e lá estava ela, pra fora da estrada. O carro ligeiramente inclinado e a cabeça dolorida.
Não sabia há quanto tempo estava ali, o que havia acontecido? Como se envolvera naquele acidente, e sozinha! Não havia ninguém por perto. Já estava fora do carro e percebeu que ele estava bem amassado, o estrago não fora pequeno. Procurou e não encontrou outro carro, estava sozinha, só não conseguia entender como tudo havia acontecido. Sondou o relógio, eram quase onze horas, era melhor tentar voltar para estrada e retomar a viagem, na cidade mais próxima ligaria pra casa. Enfiou uma aspirina na boca e mastigou na esperança de diminuir a dor que estava sentindo. Julia entrou no Astra azul, afivelou o cinto de segurança e um segundo antes de girar a chave na ignição para dar a partida ouviu uma ordem seca numa voz forte e máscula.
'-Não. Não ligue o carro'.
Ela suspendeu o movimento com o susto. Quando girou a cabeça pode visualizar o responsável pela ordem, ou pelo menos uma parte dele. Enxergou as botas apoiadas no estribo e as patas fortes do cavalo que o sustentava. Desabotoou o cinto de segurança e colocou a cabeça pra fora ao mesmo tempo em que ele desmontava e então conseguiu vê-lo por inteiro. Precisou respirar fundo para se conter, e agradeceu por estar sentada. Suas pernas tremeram ligeiramente quando ele se aproximou da janela e falou com absoluta autoridade:
'-Jamais dê partida em um carro nestas condições, você pode se machucar'. Ele era arrogante, quase rústico. Falava como se ela fosse uma garotinha desavisada.
Ela estava muda, não conseguiu dizer nada, mas sentiu uma raiva incontrolável se acumular em seu peito. Quem ele achava que era para lhe dar ordens naquele tom? Grosso! Mais uma vez ela olhou para ele, e novamente agradeceu por estar sentada. O 'filho da puta' podia ser grosso, mas era incrivelmente bonito!
'-Venha, vou levá-la para a cidade e providenciaremos para que venham buscar o carro'. Enquanto falava ele abriu a porta do carro, segurou a sua mão e conduziu-a para fora dele, deu a volta em torno dela e avaliou-a de alto a baixo. Quando se postou novamente a sua frente ele exibia um sorriso cínico e arrogante que não escondia a satisfação pelo que via.
Ela permaneceu calada, não conseguia emitir nenhum som, apenas mantinha os olhos fixos nele. E embora sentisse uma onda enorme de ódio invadir todo seu corpo e subir pela sua garganta não conseguiu liberar todas as palavras que vieram a sua mente. 'Grosso!'; 'Filho da puta, machista!'
'-Vamos'. Ele montou o cavalo que estivera quieto todo o tempo, como se assistisse a batalha que eles travavam, e estendeu-lhe a mão para que ela montasse exibindo novamente aquele sorriso cínico e absurdamente sexy.
Aquilo foi à gota d'água. Todo o ódio que estivera retido em seu peito explodiu, e ela perdeu o controle que vinha mantendo a muito custo desde que toda essa confusão começara.
'-Seu grosso! Quem você pensa que é? Acha que pode me dar ordens? Eu não vou subir neste cavalo, e não vou a lugar nenhum com você. Seu machista!'
Ele retribuiu todo aquele acesso de fúria com uma sonora gargalhada, estava achando realmente divertido. Aquela mulher minúscula parecia ser capaz de dar-lhe uma surra se ele estivesse no chão. Além de linda, ela era temperamental... Iria gostar de conhecê-la...
'-Eu só estou tentando ajudar'. Ele falou tentando parecer sério, mas o sorriso divertido que ela lhe provocava não pode ser apagado.
Ela ficou ainda mais furiosa, além de grosso e machista ele estava zombando dela. 'Canalha!'
'-Eu não preciso da sua ajuda! Vou chamar o seguro para me rebocar'.
'-Ok! Se você prefere assim, tudo bem! Mas é melhor você entrar no carro se não quiser se molhar, as nossas tempestades de verão são violentas'. Balançou as pernas esporeando o cavalo que partiu em disparada.
'-Babaca!' Julia olhou para o céu que estava azul e ensolarado há alguns minutos atrás e viu as nuvens grossas de tonalidade cinza se avolumando sobre a sua cabeça, um vento frio e furioso começou a agitar as árvores ao seu redor. O idiota tinha razão iria cair um temporal, ela se apressou em entrar no veículo e enfiou a mão por dentro da bolsa a procura do celular.
Assim que segurou o pequeno aparelho em suas mãos, o temporal desabou. Uma chuva grossa que provocava um barulho assustador ao se chocar contra o teto do carro dando a apavorante sensação de que ele não iria resistir, o vento furioso agitava as árvores ao redor e era possível sentir a leve vibração do Astra o que provocou um arrepio de medo em todo o seu corpo.
'-Filho da puta!' Ela praguejou. O filho da puta, podia ter insistido e a obrigado a acompanhá-lo. Estava acostumada a seguir ordens, era sempre assim, nunca agia sozinha. Sempre seguindo os comandos, era mais fácil. Mais cômodo evitava problemas. E se alguma coisa saísse errada, ainda podia responsabilizar o outro.
'-Droga!' Mais uma vez praguejou. Era isto que dava fazer o que queria sempre se machucava. Agora estava ali, perdida, sozinha no meio da estrada, debaixo de um temporal capaz de fazer tremer todos os seus ossos, e com a merda do telefone exibindo no visor aquela palavrinha nojenta: roam.
'-Droga! Droga! Droga!' A porcaria de lugar não tinha nem mesmo telefone.
Quando o clarão de um relâmpago rasgou o céu de alto a baixo, e o estrondo ensurdecedor do trovão despencou sobre sua cabeça, ela sentiu o sangue fugir do seu corpo e se não estivesse sentada provavelmente teria caído. Suas pernas ficaram bambas e um medo súbito e desproporcional a invadiu. Parecia impossível segurar o pranto, não iria agüentar, seus olhos começaram a queimar e as lágrimas já estavam apontando quando escutou uma batida forte no vidro ao seu lado. Engoliu em seco e recolheu as lágrimas, não iria chorar na frente daquele grosso. Não iria lhe dar aquele gostinho, depois que zombara dela. Procurou colocar no rosto um ar casual enquanto abaixava o vidro do carro.
‘-Não temos celular por aqui, só na cidade’. Ele falou de forma descontraída como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo
‘-Mas que porra de lugar é este?! Quem são vocês? Ficaram presos no tempo? Será que vocês têm energia elétrica?’ Ela estava furiosa, perdera todo o controle e ele a deixava irritada com aquele olhar indiferente e o sorriso cínico no canto da boca.
‘-Temos sim, mas não em um tempo como este’.
‘-o que? Sem luz também?’ Ela parecia desolada. Arriou na poltrona e entregou os pontos. Achou que não iria conseguir segurar o pranto. Estava perdida num fim de mundo, debaixo de um temporal assustador, com um sacana convencido, sem a menor perspectiva de conseguir continuar a viagem e ainda por cima sem telefone e sem luz!
‘- Olha, venha. Eu vou levá-la para cidade. Com este tempo é impossível que o reboque chegue para resgatar o seu carro’.
Ela não estava convencida, não sabia se queria ir. Não tinha certeza se podia confiar nele, mas quando outro relâmpago rasgou o céu e o som ensurdecedor do trovão novamente desabou sobre sua cabeça ela concluiu que não tinha alternativa. Iria para cidade e tomaria as providências para sair logo dali, ou permanecia sozinha debaixo daquele temporal. Embora contrariada teve que admitir que a segunda opção era mais assustadora.
‘-Vamos. Eu não vou mordê-la’. Ele pensou consigo que não seria uma má idéia, morder aquele narizinho petulante que ela mantinha sempre arrebitado com uma postura afetada que fazia um homem querer cravar os dentes ali só pra sentir o gosto. ‘-Você pode usar o telefone na cidade pra fazer os contatos com a seguradora’.
‘-Acho que não tenho alternativa’.
Ele abriu a porta do carro e estendeu as mãos para ajudá-la a sair. Quando suas mãos seguraram as mãos de Júlia, ela pode sentir uma energia fluir entre eles como uma descarga elétrica. Estava louca, era como se o relâmpago que tremeluzia no céu há poucos minutos estivesse se descarregando entre eles. Ela percebeu a cabeça ligeiramente leve e uma tontura fugaz a fez perder momentaneamente o equilíbrio enquanto o coração dava pinotes dentro do peito. Ele a amparou e o calor dos seus braços em torno de seu corpo a fez arrepiar-se. Com o maior cuidado ele a conduziu pelo caminho mais seguro e bem perto ela pode avistar a caminhonete estacionada na estrada. Era uma ranger preta que ele mantivera com os faróis acessos para facilitar à caminhada debaixo do aguaceiro que caia. Quando ele espalmou as mãos generosamente em seus quadris para fazê-la subir na cabine, uma onda de excitação se irradiou da sua pelve e subiu pelo seu corpo, tão logo ela se viu sentada no banco da caminhonete percebeu que os seus mamilos estavam duros e aparentes sobre a camiseta de malha amarela, tanto em função da chuva e do vento frio quanto pela sensação erótica que as mãos dele em suas nádegas haviam provocado. Rapidamente cruzou os braços sobre o peito, mas não sem antes perceber que ele também estivera olhando para seus seios, quase devorando-a com os olhos e exibia aquele sorriso cínico e arrogante no canto da boca. Lançou-lhe um olhar furioso, tanto pelo gesto inconveniente com as mãos quanto pelo olhar descarado que ele havia lhe lançado.
‘-Eu só estava tentando evitar que você caísse, desculpe!’ Ele manteve aquele sorriso cínico nos lábios enquanto se desculpava.
Ela limitou-se a fulminá-lo com o olhar. Sujeitinho irritante! Cínico!
Enquanto ela aguardava na caminhonete, ele tomou todas as providencias necessárias. Transferiu as malas para a carroceria, certificou-se de que estavam em segurança e devidamente cobertas, trancou o carro e lhe entregou as chaves. Quando ele subiu ao volante percebeu que ela estava tremendo de frio naquela calça jeans e na camiseta ensopadas, estendeu a mão por trás do banco e conseguiu apanhar a jaqueta de couro que estava ali.
‘-Tome você vai se sentir mais aquecida’.
‘-Obrigada’. Ela limitou-se a agradecer, pois, ainda estava irritada, furiosa com a forma como ele olhara para ela, e mais ainda por perceber que ficara absurdamente excitada.
Ele guiava com segurança pela estrada molhada indicando que estava acostumado aquele clima temperamental e hostil. Alguns metros mais adiante uma pequena placa quase oculta pela vegetação indicava: Nova Esperança 20 km. Ele fez a curva com cuidado saindo da rodovia e entrando numa estrada mais estreita.
'-Estamos quase chegando, você pode se instalar no 'Palácio da Esperança' e fazer suas ligações em segurança. '
'-Tenho que ligar para os meus pais que devem estar preocupados... ' Ela falou mais para si mesmo do que para ele.
'-Estava indo visitá-los'.
Ela confirmou com um meneio de cabeça. Embora estivesse com um enorme estoque de perguntas na cabeça ele achou melhor não incomodá-la, ela parecia querer ficar só.
Alguns minutos mais e ele parou o carro. Desceu, deu a volta e abriu a porta ajudando-a a saltar. Ela pode perceber que a chuva diminuíra de intensidade e o vento não parecia mais furioso, agora soprava como uma brisa leve espalhando o agradável cheiro de terra molhada pelo ar. Aguardou enquanto ele tirava a sua mala da carroceria e o acompanhou quando ele entrou no hotel.
'-Ei, Carlos, trouxe uma hospede para você'.
Enquanto o homem idoso se aproximava com seus passos vagarosos, ela focalizou todo o ambiente ao seu redor. Não era um hotel cinco estrelas, mas o ambiente era aconchegante fazia lembrar a casa dos avós, a iluminação produzida pelos lampiões suspensos na parede davam ao local um ar acolhedor. Gostara dali, com certeza poderia ter uma noite agradável e resolver todos os problemas amanhã.
'-Boa tarde!' O velho conseguira chegar ao balcão e lhe oferecia um sorriso cativante.
Antes que o proprietário começasse a mostrar-lhe as opções de estadia, o outro homem estendeu-lhe a mão e ofereceu-lhe um sorriso sedutor.
'-Venha jantar no Guet's esta noite, e eu lhe pagarei uma bebida se você me disser o seu nome'.
Antes que ela pudesse responder ele desapareceu pela porta.
***
Julia estava de banho tomado e com roupas secas e aquecidas no amplo e aconchegante quarto do hotel. Andava de um lado para o outro com o pequeno telefone no ouvido, tentando tranqüilizar os pais, bastou se virar um pouquinho para perceber a claridade difusa que se irradiava pelos vidros da janela. Ficou curiosa, aproximou-se e com alguma dificuldade conseguiu girar o trinco com a mão livre e escancarou a janela de madeira. O espanto foi tão grande que ela achou que estivesse sonhando. Era impressionante! Como era possível? Há poucos minutos atrás uma tempestade assustadora quase inundava a cidade e agora o céu estava completamente límpido. O azul que ela enxergava era deslumbrante, parecia irreal, mágico, e... Nenhum sinal das nuvens ameaçadoras, e aquele sol pálido que irradiava seu brilho por toda parte. Deslumbrante! Ela se aproximou mais um pouco, se debruçou sob o parapeito da janela e quase deixou o telefone cair quando o viu. Era algo que sempre a encantava, era o que ela mais gostava na natureza. Fazia com que suportasse a chuva, na expectativa de que ele apareceria depois. Despediu-se rapidamente dos pais e prostrou-se na janela admirando o arco multicolorido que se desenhava no céu, era o maior, o mais brilhante e mais belo arco-íris que já vira! Imaginou ter escutado uma voz a lhe sussurrar 'no fim do arco-íris, há um pote de ouro'.
Começou a rir sozinha, agora estava ficando louca! Isto é lenda, folclore! Mas a voz novamente sussurrou em seu ouvido 'no fim do arco-íris há um pote de ouro'. Sentiu o coração palpitar e uma idéia florescer na sua mente, e se ela seguisse a trilha, e se chegasse ao fim do arco-íris? O que encontraria? Ora, Julia, que idéia mais louca! Todo mundo sabe que não existe o fim do arco-íris! A idéia voltou a florescer na sua mente e uma sensação incontrolável de ansiedade agitou seu coração, que mal havia em dar um passeio por ai, conhecer a cidade é claro que não iria perseguir a trilha do arco-íris, nem procurar um pote de ouro, era só um passeio. Calçou uma sandália de tirinhas, deu uma última olhada no espelho alisando a saia do vestido de brim com mangas japonesas, que terminava logo acima dos joelhos e moldava-lhe suavemente os quadris e desceu.
Enquanto girava pelos arredores sentia o sol queimar ligeiramente a sua pele e aspirava o aroma agradável de terra molhada. Não demorou alguns metros para passar em frente ao Guet's o que a fez recordar o convite daquele homem, 'Filho da puta machista' afastou o pensamento, teria que analisar mais tarde se iria aceitar o convite. Poderia aproveitar o passeio para descobrir se poderia jantar em outro local, embora alguma coisa lhe dissesse que ela iria aceitar. E, quando começou a se sentir ofegante pela subida de uma pequena colina, olhou para cima e percebeu que estivera todo o tempo seguindo o arco-íris, e ele a levara até ali, no alto da colina onde uma pequenina casa de madeira estava assentada.
'-Olha só, o meu pote de ouro!'
Ela estava se sentindo cansada e ofegante pela caminhada, mas também feliz. Nunca sentira uma paz e uma felicidade tão genuínas! Sentou-se na escada para tomar fôlego enquanto estudava a paisagem ao seu redor. Parecia deserta e abandonada, mas ainda assim encantadora. Começou a imaginar que seria gostoso viver ali, acordar com os sons da natureza, tomar café olhando aquela paisagem e caminhar até o trabalho, não precisaria de carro ali. No caminho até a cabana encontrara farmácia, mercado, uma agência bancaria e os correios, além do Guet's que parecia realmente ser o único bar da cidade. Levantou-se e deu a volta em torno da cabana, estava realmente abandonada, o jardim precisava de cuidados e uma pintura não seria mal. Sentiu uma alegria genuína quando viu o riacho nos fundos, era mesmo um lugar agradável, poderia ser bom viver ali.
***
A noite chegou, e Julia não teve escolha. Não adiantava ficar no quarto, não iria conseguir uma refeição decente ali. E quando chegou à janela o céu de um azul escuro, completamente livre de nuvens e pontilhado de estrelas estava visível para seu deleite, à lua majestosa iluminava tudo com um brilho prateado. Sentiu-se invadida pela magia daquela noite e suspirou, afirmando para si mesmo que seria um sacrilégio permanecer trancada no quarto. Ela não iria deixar de desfrutar a noite por causa daquele troglodita. Mas um troglodita escandalosamente sexy! O pensamento se formou antes que ela pudesse contê-lo e provocou-lhe uma onda de calor que Julia afastou praguejando furiosa consigo mesma. Era hora da sua vingança! Colocou um tubinho vermelho de alcinhas finas com um generoso decote nas costas, calçou a sandália preta de salto alto e aplicou uma maquiagem leve. Algumas gotas de perfume, argolas douradas e a corrente de ouro com o pequeno coração pendurado. Olhou-se no espelho e gostou do que viu. Vamos ver o que aquele troglodita vai fazer.
O Guet's era o único bar e restaurante da cidade. É claro que existiam outros botecos espalhados por aí, aonde se podia tomar uma cerveja, uma cachaça, jogar uma sinuca e bater um papo com os amigos. Havia também o bistrô francês para um jantar sofisticado regado a um bom vinho. Mas se você queria algo mais descontraído, boa comida, música, dança e um flerte com certeza o lugar era o Guet's.
Ele a notou tão logo ela atravessou a porta. E como era uma cidade pequena todos os olhos se voltaram para ela quando Julia entrou no bar, aquilo a deixou completamente embaraçada, ela odiava ser o centro das atenções. Então para fugir da situação incomoda tanto quanto para provocá-lo ela se encaminhou ao balcão e sentou-se próximo aquele homem. Ele aspirou deliciado o perfume que sua pele exalava... Primavera em Paris era esse o cheiro que ela tinha, suave, delicado, romântico, sexy. Ele ofereceu-lhe aquele sorriso cínico e ao mesmo tempo sexy de canto de boca, e isto foi o suficiente para que a raiva completamente suplantada pelo agradável passeio sob o arco-íris viesse à tona novamente, ele era cínico e convencido, mas ainda assim não podia negar que mexia com ela. Bobagem! Fantasias, você esta se sentindo só. E apenas auto-piedade, nada mais. Toda aquela convicção, porém, não foi suficiente para impedi-la de se dirigir a ele, retribuindo o sorriso cínico.
'-Meu nome é Julia, e eu vou aceitar uma caneca de cerveja'. Ela estendeu a mão enquanto fitava a mudança em sua fisionomia, ao mesmo tempo em que sentava em um dos bancos que ficavam no balcão, cruzando as pernas e fazendo o vestido subir alguns centímetros para o deleite de Dominic.
Ele arregalou os olhos em surpresa e recolheu momentaneamente o sorriso sem acreditar no que estava acontecendo. Então ela estava querendo flertar? Aquilo era espantoso! Tinha errado em suas previsões e isto era raro em se tratando de mulheres! Ele demorou um pouquinho para recuperar o controle, armou novamente o sorriso poderoso e segurou a mão que ela lhe oferecia.
'-Dominic Firenzze, é um enorme prazer oferecer-lhe a cerveja'.
Ele beijou delicadamente a mão que estivera segurando antes de pedir ao garçom que lhes servisse. E foi a vez de Julia precisar conter o espanto. Ela não esperava um gesto como aquele vindo de um grosso. Ah! Então ele também podia ser gentil e sedutor quando queria. Julia sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha com o contato dos lábios quentes e firmes daquele homem em sua pele. Não pode evitar o pensamento de como seria sentir aqueles lábios sob os seus. Firme, possessivo, poderoso, era como deveria ser o beijo dele. Ela foi surpreendida pelo gesto gentil e isto diminuiu um pouco a raiva que ele lhe provocava.
'-Vocês têm uma cidade adorável!'
'-Eu a vi, durante à tarde, caminhando... '
A revelação era amistosa, mas ela se sentiu invadida, ele conseguia ser bastante desagradável quando queria. Quem ele pensava que era para espioná-la, era só o que faltava. O homem além de grosso era indiscreto.
'-Você estava me espionando?'
Ele soltou uma gargalhada e utilizou um tom sedutor para responder.
'-Não mesmo, mas você desfilou em frente ao banco... Exatamente no momento em que eu conversava com o gerente... Seria impossível não vê-la, estava linda seguindo o arco-íris... ' E ele pensou que era mesmo um desfile o que ele presenciara. Ela era uma beleza. Miúda, mas com um par de pernas capaz de fazer um homem sonhar acordado em como seria deslizar as mãos de cima a baixo por elas. E os quadris... Nossa! Ele não queria pensar, mas era impossível não imaginá-la montando-o e movimentando os quadris sobre ele numa cavalgada durante uma sessão de sexo selvagem.
Ela sentiu o coração palpitar com aquelas palavras, será que estava tão evidente assim, o que aquelas pessoas iriam pensar...
'-Eu não estava seguindo o arco-íris, apenas caminhando... '
'-Eu também gosto de segui-lo, mas nunca encontrei meu pote de ouro, e você?'
Ela sentiu as suas defesas desabarem, mais uma vez ele estava sendo gentil, quando ela olhou dentro dos seus olhos tinha certeza de que ele estava sendo sincero, sentiu uma onda de ternura invadi-la.
'-Um pote de ouro, não. Mas, encontrei um tesouro... ' Ela tinha um olhar sonhador e um sorriso travesso se formou em seus lábios fazendo com que Dominic pensasse em fadas e feiticeiras...
'-Ah! A cabana da colina. ' Ele sussurrou bem próximo de Julia olhando-a bem dentro dos olhos como se houvessem apenas os dois no salão completamente lotado do pub, enquanto brincava com uma mecha dos cabelos loiros de Julia entre os dedos. Mais uma vez ela se surpreendeu com a ternura e a gentileza na voz dele.
'-Você conhece?' Ela respondeu fazendo um esforço enorme para a sua voz sair firme, pois a maneira como ele a olhava, como se ela fosse a única mulher no mundo, fazia o sangue de Julia circular mais rápido em suas veias e seus joelhos ficarem bambos.
'-É um lugar que eu costumo visitar quando quero ficar só... ' Ele respondeu colocando a mecha de cabelo atrás da orelha de Julia e deixando os dedos deslizarem pelo pescoço esguio até a base onde ele podia sentir a pulsação dela se acelerar sob os seus dedos. Engoliu em seco e respirou fundo para controlar o desejo de beijá-la ali, logo acima do colo, na reentrância sutil situada na base do pescoço onde o pingente em forma de coração repousava pendurado na fina corrente de ouro. Queria sentir o coração dela pulsando na sua boca, e depois subir até os lábios e saboreá-los.
Julia ainda estava envolvida pelas palavras e completamente cativa daquele olhar penetrante que parecia devorá-la de forma sutil e sensual. Ele exibira um tom de voz que expressava profunda solidão. Como era possível? Aquele homem tão seguro de si, confiante, até mesmo petulante, estava agora na sua frente, ela uma mulher desconhecida, completamente desarmado. Ele era surpreendente!
'-Está abandonada?' Ela falou ao mesmo tempo em que pegava a caneca de Guinnes para sorver um gole generoso tentando se afastar e quebrar a conexão sufocante que os unia de forma perigosa.
Ele também se afastou instintivamente do fogo que parecia querer fundi-los e tal como ela bebeu um largo gole da cerveja preta antes de responder.
'-Sim, há pelo menos vinte anos. Quando a Sra. Cecília morreu o marido não suportou a solidão e se mudou para o hotel. Desde então a cabana esta abandonada'.
'-E os filhos, não se interessaram?'
'-Eles não tiveram filhos’.
'-Que coisa triste... '
'-Aposto que ele adoraria vendê-la'. Ele disse estas palavras olhando-a bem dentro dos olhos, e pode perceber ali um brilho de expectativa.
A temperatura voltou a subir e aquela conexão surpreendente e assustadora ameaçava dominá-los mais uma vez, tornando o ar naquele ponto do pub quase palpável. A música começou a soar. O som da sanfona habilmente manejada por Maneco, acompanhado do triangulo que marcava o ritmo, não demorou muito para que os casais invadissem o salão. Antes que desse vazão ao desejo que estava sentindo de tomá-la nos braços e saciar a curiosidade de sentir o sabor da boca de Julia na sua, Dominic tirou-a para dançar. Sentia-se curioso para tê-la em seus braços. Já que não podia beijá-la, poderia experimentar a sensação de tê-la em seus braços e rodopiar com ela pelo salão, tinha a sensação de que seria uma experiência deliciosa.
'-Ei, vamos pra pista'. Ele convidou sem dar-lha a chance de recusar.
E antes que ela pudesse fazer qualquer objeção ele já havia arrastado-a para a pista e quando enlaçou a sua cintura Dominic não teve duvidas, ela era maravilhosa. A surpresa em Julia foi tão grande que ela ficou sem ação, e quando tomou consciência do que estava acontecendo, ele já tomara conta da situação. Ela estava completamente dominada, ele apertava seu corpo bem junto ao dela e movimentava-se sensualmente no ritmo da música projetando sua perna por entre as coxas de Julia com o movimento natural da dança. A sensação era tão agradável que embora contra sua vontade ela não conseguia se desvencilhar, quanto mais ela tentava se soltar mais ele a apertava e então ela se deixou levar no ritmo da música, procurou esquecer que estava nos braços de um homem completamente desconhecido.
Quando os últimos acordes da música soaram eles estavam ofegantes, pelo ritmo alucinante da dança e também porque o movimento sensual e quase erótico dos corpos naquele balé fazia o sangue correr mais rápido em suas veias, Dominic ainda a mantinha em seus braços, num encaixe perfeito dos corpos, sentia a cabeça tonta e o perfume dos cabelos louros de Julia o deixava embriagado, as idéias estavam desconexas em sua mente, sentia o seu sangue ferver e antes que pudesse pensar sussurrou em seu ouvido.
'-Eu seria capaz de possuí-la, aqui, se nos estivéssemos sozinhos'.
A reação dela veio antes que a frase realmente se tornasse consciente, como se fosse um reflexo condicionado. A bofetada sonora explodiu em seu rosto quase ao mesmo tempo em que as palavras foram jogadas na sua cara.
'-Canalha!'
Ele demorou alguns segundos para entender o que estava acontecendo, e quando sentiu o peso daquela mão em sua face às palavras ficaram claras na sua mente. O que ele havia dito? Não queria dizer aquilo! Não desta forma, que idiota!
'-Julia!' Ele tentou retê-la, mas ela se desvencilhou dos seus braços e saiu correndo em direção ao hotel. Dominic ainda tentou alcançá-la, mas foi em vão.
Todas as suas malas já estavam acomodadas no Corsa vermelho que seria seu pelas próximas semanas. O estrago no seu carro fora maior do que os arranhões aparentes na lataria sugeriam. Ela acertou a conta do hotel, e antes que entrasse no carro sentiu aquela mão forte detê-la pelo braço. Não precisaria se virar para saber quem era, mas mesmo assim o fez. Queria olhar na cara daquele canalha, fuzilá-lo com toda a fúria que sentiu crescer dentro de si, mas embora não quisesse admitir, tinha que lidar também com o desejo que ameaçava dominá-la, ele a excitava. Mas que droga! Era só porque estava se sentindo só.
'-Você é muito cínico!'
O olhar de fúria e desejo que ela lhe lançou apagou todas as palavras que ele havia ensaiado durante a noite para se desculpar. Ele errara, sabia disso, fora mesmo um canalha idiota, mas, droga! Ela também o desejara, podia sentir pelo tremor do seu corpo e pela pele arrepiada, quando ela estivera rodopiando pelo salão em seus braços... Antes que ela se desvencilhasse dos seus dedos, ele a segurou com mais firmeza e forçou-a a se virar, aproximou seu rosto quase a sufocando com seu hálito quente e másculo, e olhou-a bem dentro dos olhos.
'-Quando você voltar, e eu sei, pelos seus olhos, que você vai voltar, eu vou tê-la, Julia'.
O choque daquelas palavras e da convicção com que elas haviam sido pronunciadas por ele foi tão grande que ela não conseguiu emitir qualquer som, sua garganta estava travada, o coração disparado e a cabeça ressoava como um tambor. As mãos de Julia tremiam quando ela pousou-as no volante, respirou fundo e fez um esforço tremendo para girar a chave. E quando o fez ela sabia no seu íntimo que os sentimentos que agitavam o seu sangue eram ao mesmo tempo fúria e desejo.
***
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