Capitulo 6
O telefone colocado na mesinha ao lado da sua cama soou estridente por alguns minutos, antes que ela fosse despertada. Levantou-se sobressaltada e achou graça. Apenas algumas semanas e já começava a perder o costume adquirido nos plantões de despertar ao primeiro toque, estava ficando mal acostumada às noites tranquilas.
Retirou o fone do gancho e levou o aparelho ao ouvido procurando abafar o bocejo que se iniciara.
'-Alô!'
'-Dra. Julia, desculpe. É o meu marido ele está passando mal...'
Não foi difícil para a médica reconhecer o medo e a angústia na voz do outro lado da linha. No entanto todos os anos passados nas emergências, desde os tempos de acadêmica até os seus últimos plantões, há haviam ensinado alguma coisa. Precisava fazer um inventário rápido e objetivo da situação, pois sair de casa no meio da noite para atender um alarme falso, era muito mais desagradável do que ser acordada em plena madrugada, no plantão para atender esposas infelizes.
'-O que ele está sentindo?'
'-Dor no peito, ele está molhado de suor, e...'
Antes que a mulher terminasse a frase Julia já começara a raciocinar clinicamente. Aquilo não era brincadeira, nem uma esposa histérica, era grave.
'-Me dê o endereço que estou indo.'
Menos de quinze minutos depois ela parou o jipe na porta da casa de muro amarelo, que afortunadamente não ficava muito longe. Retirou de dentro do carro a sua bolsa e o aparelho de eletrocardiograma.
Talvez escutando o barulho do carro a mulher do doente abriu a porta tão logo Julia acabou de vencer os três degraus que separavam a casa da calçada.
'-Doutora, acho que ele está pior, pois a respiração está esquisita.'
A mulher estava aflita, arrastando a médica para dentro enquanto falava. Aquelas duas palavras, 'respiração difícil' soaram como uma sineta na cabeça de Julia. Antes de prosseguir ela deu uma ordem curta e clara a mulher.
'-Vá até o carro e traga a maleta que está no porta-malas, eu o encontro.'
Seu tom de voz era firme e seguro, próprio das pessoas acostumadas a estar no comando. Esta era uma de suas contradições fascinantes, a mulher tímida e envergonhada, se tornava segura e confiante no exercício da sua profissão. Ali sentia-se no comando, sabia como se comportar não tinha medo.
Julia avançou a passos rápidos e não demorou muito para encontrar o quarto. Estava quente e abafado. O cheiro de suor e de doença, que ela tantas vezes já sentira nas inumeras noites de plantão, impregnava o local. As janelas fechadas e as cortinas cerradas davam um ar opressivo ao ambiente, como se a morte, aquele eterna inimiga da medicina, estivesse a espreita, aguardando para entrar em cena. Seria bom escancará-las e deixar entrar o frescor da noite e a claridade do luar, mas não podia perder tempo com isto.
Enquanto ruminava aquelas conjecturas, já havia adaptado o esfigmomanômetro ao braço do paciente, verificou a pressão. Doze por oito, nada mal. Segurou o pulso e se alarmou quando finalizou a contagem, cento e vinte por minuto, aquilo não era bom, rápido demais.
O homem estava pálido, um suor gelado cobria-lhe a pele tornando-a pegajosa, a respiração era barulhenta, mostrando que o ar tinha dificuldades em entrar e sair dos pulmões. A médica ajustou o estetoscópio no ouvido e aplicou-o ao peito do paciente.
Cuidadosamente escutou os sons do seu coração. Movimentou o instrumento em várias direções, procurando captar todos os aspectos da sonoridade do paciente, e a cada novidade, sua fisionomia se tornava mais tensa. Era mais grave do que imaginara.
Abriu a maleta de emergência que ela sempre trazia no porta-malas do carro e retirou dois comprimidos de ácido acetil salicílico. Entregou-os ao paciente e mandou que ele mastigasse, então, aproximou-se da cama e mandou que o homem abrisse a boca e levantasse a língua e depositou ali um pequeno comprimido rosa, orientando-o a deixa-lo se disssolver. Poucos minutos depois, a droga começava a agir, aliviando um pouco do desconforto que aquele homem vinha experimentando desde o início da noite.
Quando ligou o aparelho de eletrocardiograma, Julia já sabia o que iria encontrar. Não ficou surpresa quando o papel termosensível foi marcado com uma imagem deformada do impulso elétrico do coração, indicando que uma grande parte do músculo cardíaco estava sofrendo um processo de isquemia.
Jesus! Aquilo era grave, aquele homem não tinha a menor chance de sobreviver ali, o dano miocárdio era extenso demais. Ele precisava ser levado para um hospital. Deus! O que iria fazer?
Tentando raciocinar objetivamente, a jovem médica acionou o telefone para chamar o seu colega.
O velho médico acordou ao primeiro toque do telefone, estava acostumado aquilo, fizera isto a vida toda. Ainda que eles tivessem acertado que Julia iria responder aos chamados noturnos, pois ele estava cansado, Luís Antônio sabia que isto levaria tempo. Era o médico da cidade há tempo demais, as pessoas demoravam a se acostumar com a novidade, e, ele sabia, que alguns pacientes mais antigos não o abandonariam de forma alguma. Muitos eram resistentes as mudanças, e outros, desconfiavam da médica nova. Jovem demais, bonita demais para ser uma boa médica, não importando o que ele lhes dissesse em contrário, eles seriam sempre relutantes e turrões.
'-Alô! É o Dr. Luís Antônio.'
'-Luís Antônio, preciso de ajuda. É o Gilberto Ramos, infarto anterior, se não transferirmos ele não vai agüentar.'
Julia procurou ser o mais discreta possível para não alarmá-los. O velho médico captou a gravidade da situação nas entrelinhas da conversa. Vestiu-se rapidamente e em pouco tempo estava se juntando a colega. Ouviu o relato breve do caso e não teve qualquer dúvida. Já perdera pacientes assim, quando os avanços da cardiologia eram precários e o infarto era uma doença quase tão difícil quanto os cânceres mais agressivos. Mas, agora! Estavam num século de evoluções, e ele tinha ao seu lado uma profissional extremamente competente, e o que era ainda mais importante, humana. Julia se preocupava realmente com os pacientes.
'- Santa Lucia, é o hospital mais próximo com recursos para recebê-lo, tem CTI e hemodinâmica.'
'-Quanto tempo?' Julia perguntou aflita.
'-Cem quilômetros, uma hora, quarenta minutos a esta hora, se formos rápidos.'
'-Você dirige, eu vou com ele atrás.'
O Dr. Luís Antôniol acelerou o máximo que pode. Antes de partirem a Dra. Julia puncionou a veia do paciente, deixando acoplado um escalpe para o caso de haver necessidade da administração de algum medicamento.
Prevendo a gravidade do caso, preferiu organizar algumas drogas, aspirando-as em seringas; adrenalina, atropina, ancoron, lasix; deixando-as prontas para qualquer emergência. Manteve o aparelho de pressão no braço do paciente e o estetoscópio no pescoço.
Durante todo o trajeto, a Dr. Julia monitorizou incansavelmente os sinais vitais do paciente. Inicialmente, ficou confiante. Ele era um homem previamente saudável, seu único pecado era o vício do cigarro, e depois do comprimido de nitrato a dor havia aliviado um pouco e a respiração estava mais leve.
Entretanto, a medida que o Dr. Luís Antônio avançava, a angústia voltou a dominar as suas emoções. As coisas não estavam seguindo um bom curso. O breve período de estabilidade hemodinâmica foi sendo substituído por uma progressiva piora do quadro.
A respiração do homem tornou-se ruidosa e difícil. A pele novamente ficou fria e úmida, coberta por um suor pegajoso, os lábios pálidos e uma coloração azulada começou a aparecer na ponta dos dedos. Quando checou novamente a pressão, a médica ficou ainda mais apreensiva, não estava mais satisfatória, caíra perigosamente indicando que o coração estava mais fraco. Ao avaliar a pulsação, que outrora estava forte e rápida, Julia percebeu que, agora, o pulso se encontrava fino e quase imperceptível, um sinal claro de insuficiência circulatória.
'-Está chocado.'
Ela emitiu as palavras para alertar o outro médico que dirigia. O velho doutor percebeu a angústia no tom de voz da jovem colega, e reconheceu a sua ordem.
'-Estou fazendo o melhor que posso.' Ele respondeu de forma seca, mas não deixou de demonstrar pela entonação das palavras que também estava preocupado.
Procurando utilizar todos os poucos recursos de que dispunha para sustentar a vida daquele homem até que chegassem ao hospital, Julia se confrontava pela primeira vez com uma dúvida real sobre a sua mudança. Será que tinha feito a escolha certa? Será que não fora precipitada? Nos últimos meses vinha fazendo muitas coisas de forma precipitada. Primeiro transara com um barman desconhecido, depois abandonara um emprego promissor e uma carreira certa na universidade por uma cabana encontrada no final do arco-íris, e depois trepara com outro desconhecido. Alias, aquilo estava virando sua rotina sexual.
E, agora, estava ali, completamente impotente, com um moribundo nas mãos, um caso grave de infarto agudo do miocárdio. Ele com certeza sobreviveria se eles estivessem no hospital universitário. Há esta altura eles já teriam estabilizado a sua condição e o paciente estaria entrando no laboratório de hemodinâmica para fazer a angioplastia e resolver o problema. Mas ali, naquele fim de mundo! Nem mesmo uma ambulância para um transporte adequado?!
O médico parou o carro na porta do hospital e saltou com uma agilidade surpreendente para a sua idade. Correu até a recepção do hospital e como era um velho conhecido de todos não demorou a retornar com o maqueiro. Colocaram o paciente na maca e imediatamente o conduziram a sala de 'Grande Emergência'.
A Dr. Julia acompanhou-os e enquanto o paciente era deslocado da maca para o leito, identificou o médico de plantão, que já estava calçando as luvas e empunhando o laringoscópio. Rapidamente, com a eficiência de quem esta acostumado a chefiar a equipe de plantão, ela fez um relato objetivo do quadro clínico e de suas ações terapêuticas.
Mesmo enquanto escutava o relato preciso da colega, o médico não interrompeu o seu trabalho. O tubo orotraquel, depois que o cuf havia sido testado pelo enfermeiro, foi colocado próximo sob um campo estéril. Com a mão esquerda o doutor segurou o laringoscópio, aproximou-se do rosto agonizante do doente e utilizando a mão direita num movimento firme, porém, delicado tracionou a mandibula para cima estendendo-lhe o pescoço. Ao mesmo tempo introduziu a lâmina curva do laringocópio na boca do homem moribundo, afastando a língua e expondo toda a cavidade oral.
A boca mantida aberta pelo movimento combinado da tração do mento e do laringoscópio, era iluminada pela lâmpada de fibra ótica localizada na ponta do instrumento permitindo ao médico enxergar a profundidade da garganta. Ele ergueu um pouco mais o instrumento aumentando o seu campo de visão e dobrou ligeiramente os joelhos, curvando-se um pouco mais, para que seus olhos ficassem na altura da boca aberta.
E, então, não teve dificuldades para visualizar a epiglote. A lâmina do laringoscópio, foi passada por baixo da cartilagem que separa o esôfago das vias respiratórias, e delicadamente levantada tornando plenamente visível as cordas vocais, este era o sinal. Mantendo o olho fixo, para não perder de vista as duas saliências que se abriam e fechavam com a passagem do ar e eram o seu guia do caminho a seguir, o médico estendeu a mão direita. Num movimento coordenado e eficiente de equipe o enfermeiro entregou-lhe o tubo. A prótese plástica foi introduzida através das cordas vocais e alcançou a traquéia.
Enquanto o médico retirava o laringoscópio e endireitava o corpo, o enfermeiro utilizou uma seringa para insuflar o cuf e impedir que o ar percorresse caminhos anormais, em seguida acoplou o ambú ao tubo e apertou a bolsa plástica que lembrava uma bola de futebol americano, introduzindo artificialmente ar enriquecido em oxigênio nos pulmões do paciente.
O plantonista utilizou o estetoscópio para escutar os pulmões e certificar-se de que o ar estava circulando em todas as direções. Antes que eles pudessem adaptar o respirador para substituir temporariamente aquele pulmão, o outro enfermeiro deu o alarme.
'-Fibrilando!'
O médico imediatamente alcançou as pás do desfibrilador posicionando-as sobre o peito do paciente.
'-Vou no três. Um, dois, três.'
Mantendo o equipamento sobre a pele do paciente ele verificou a tela do monitor, sem perder tempo aumentou a carga e novamente disparou fazendo com que um impulso elétrico percorresse o peito do paciente. Mais uma vez olhou atentamente o monitor e constatou que não tivera sucesso. Pela terceira vez ele voltou a aumentar a carga e disparou um choque de trezentos e sessenta joules no peito do paciente e constatou frustrado que novamente não havia sucesso.
Julia que já havia calçado luvas e acompanhava todo o procedimento atentamente, se aproximou e começou a massagem cardíaca, se integrando prontamente a equipe. O médico de plantão manteve as pás do desfibrilador nas mãos e iniciou as ordens para os medicamentos.
'-Adrenalina, duas.'
Eles utilizaram todos os recursos disponíveis, compartilharam seus conhecimentos e sua experiência na tentativa incansável de salvar aquela vida, mas foi em vão. Uma hora depois os esforços foram encerrados e o paciente foi declarado morto.
O Dr. Luis Antonio que era um antigo conhecido da família, se encarregou de dar a notícia à esposa. Os enfermeiros começaram a preparar o corpo que seria transportado para a capela do hospital até a chegada do serviço funerário. Os dois jovens médicos procuraram o refúgio da cantina.
'-Damião, dois cafés.' Pediu o Dr. Henrique.
Era um médico jovem, não mais que trinta e cinco anos, alto e magro. O cabelo escuro e escorrido era cortado bem rente de modo que os fios ficavam arrepiados, um efeito que se acentuara com o suor decorrente do esforço de tentar ressucitar o paciente. Julia não conseguia definir se achava que ele era bonito. Simpático, sem dúvida. Agradável, também era fácil perceber e honesto, ele tinha a expressão de um homem em quem se podia confiar. Observando-o caminhar em sua direção, ela acrescentou mais uma qualidade a sua lista, elegante.
'-Sou Henrique Nóbrega, chefe do setor de emergência. Era seu paciente?' Ele perguntou estendendo a mão para um cumprimento enquanto se sentava à frente dela.
'-Prazer, Julia. Na verdade, não. Estava respondendo a uma chamada domiciliar.'
'-Nova Esperança?' Ele perguntou, pois se lembrara de que o Dr. Luis Antonio ficara encarregado da família.
'-Me instalei há alguns meses.'
'-Em definitivo?' Ele perguntou curioso com a possibilidade de um bom profissional por perto.
'-A idéia é esta. Progressivamente vou assumir os pacientes de Luis Antonio.'
'-Seja bem vinda, é bom ter gente competente por aqui.' Ele não escondeu a satisfação nas palavras.
'-Obrigado. A propósito, quero parabenizar a equipe, vocês são excelentes.' Julia também não omitiu a satisfação na voz.
'- O hospital tem como política que todos os médicos façam o ACLS e os enfermeiros o BCLS, e além disto, temos treinamento periódico para mantermos a equipe alerta.'
'- Ainda assim, não conseguimos salvá-lo.' O tom de mágoa, fracasso e fúria era indisfarçável em sua voz.
Henrique também estava se sentindo assim, era sempre uma reação natural quando não conseguiam ressuscitar um paciente. Mas queria confortá-la, a colega havia feito muito mais do que qualquer outro médico em situação semelhante. Ela tinha um compromisso com o doente que lembrava os primórdios da profissão.
'-Era um infarto extenso...'
'-Ainda assim, se tivéssemos chegado mais rápido e se houvessem recursos melhores no transporte, ele poderia ter sobrevivido...'
'-Ou não.' Ele foi firme, tentado aliviar a carga de angústia que percebia na colega.
O silêncio se estabeleceu enquanto os dois médicos saboreavam o café forte e amargo. Julia se surpreendeu pelo fato de ser saboroso, ela era uma apreciadora apaixonada da bebida e conhecia qualidade precária do líquido preparado na maioria dos hospitais.
Henrique estava curioso. Não fazia sentido. O que aquela mulher estava fazendo ali? Ela era uma moça da cidade, ele podia ver pelas roupas sofisticadas e o visual moderno. E a sua postura profissional? Era alguém acostumado a atuar em grandes emergências, tinha o linguajar atualizado, a postura de quem transitava em serviço de ponta. A forma precisa e objetiva com que ela lhe relatou o caso, deixava claro que ela era uma médica acostumada ao ambiente universitário, aos congressos, não era uma médica do interior.
'-É fácil perceber que você valoriza a tecnologia, porque a mudança?'
'-Acho a tecnologia imprescindível, e hoje pela primeira vez duvidei da minha escolha... Mas, cansei de ser cerceada no meu direito de trabalhar... Planos de saúde, acabaram com a medicina... Estava insatisfeita, e um acidente me trouxe pra cá.'
Ele continuou a fitá-la curioso, esperando que Julia lhe revelasse a natureza do acidente, mas ela permaneceu calada, até devolver-lhe a pergunta.
'-E você? Também percebi que valoriza a tecnologia, como veio parar aqui?'
Mesmo inconscientemente ele ficou irritado com a insinuação de que estava num hospital precário e protestou antes de responder.
'-Temos o que há de melhor por aqui. Somos o único hospital da região e estamos aparelhados para realizar angioplastia, cardíaca e até neurocirurgia.'
'-Hum.' Ela concordou monossilábica.
'-Minha mulher e eu queremos dar qualidade de vida a nossos filhos, tão logo terminamos a faculdade não tivemos dificuldade em aceitar a proposta do hospital.'
'-Ela é médica também?'
'-Pediatra.'
Julia concordou com um movimento de cabeça e permaneceu calada. Os pensamentos giravam ininterruptamente em sua cabeça.
'-Você disse que este é o único hospital da região?'
'-Em todo o vale.'
'-E atendem os seguros-saúde e o governo?'
'-E particulares também.' Ele concordou sem entender aonde ela queria chegar.
'-Têm um bom movimento?'
'-Ah, sim! Qualquer um que precise de procedimento mais sofisticado por aqui, acaba conosco.'
'-Hum.'
Agora ele ficara realmente curioso. Aonde ela queria chegar?
'-Ei! O que você está pensando?'
'-Hum, não sei. Preciso deixar a idéia amadurecer...'
'-Mas isto é putaria. Você me enche de perguntas, me deixa totalmente curioso, e não vai falar nada?'
'-Prometo que você será o primeiro a saber.'
***
Não era uma situação nova para ela. Os anos passados no ambiente universitário haviam preparado Julia para uma ocasião como aquela. O que a estava deixando com um frio na barriga e a sensação de uma dúzia de pedras no estomago era a deferência com que ela fora tratada quando Henrique ligara solicitando ajuda, há algumas semanas atrás. Ela sabia que os membros do corpo clinico do Hospital estavam considerando-a como uma formadora de opinião, alguém a quem se poderia recorrer em situações extremas, casos complicados e não habituais. Não era medo, ela tinha plena confiança no seu potencial e na sua qualificação profissional. Era boa, muito boa no que fazia e sabia disso. O que a incomodava era a exposição, era ser o centro das atenções, era ser alçada a posição de destaque, não gostava daquilo, preferia a descrição. Não estava em busca de holofotes, gostava da simplicidade e do ritmo lento que encontrara em seu cantinho no fim do arco-íris.
Acordou cedo e pouco depois das sete horas já estava na estrada. Viu o sol surgindo e clareando tudo ao longo do caminho. Deliciou-se com a oportunidade de apreciar a paisagem florida que serpenteava as margens da estrada dando a tudo um colorido encantador e que dera a origem ao nome pelo qual toda aquela região era conhecida - Vale da Flores. O ar estava fresco e límpido, o aroma das flores impregnava o ambiente fazendo com que Julia dispensasse o ar condicionado e dirigisse com as janelas do Jipe escancaradas para o frescor daquela manhã. No radio a voz incomparável de Elis Regina celebrava os pingos na roseira, os passarinhos e a primavera cantando o clássico do mestre Tom Jobim, como se fosse uma trilha sonora especialmente criada para aquela manhã. A médica cantarolava a letra de "Chovendo na Roseira", ao mesmo tempo em que dedilhava a melodia no volante como se ele fosse um piano, estava feliz! Como não havia tráfego naquela hora da manhã ela fez o percurso em cinquenta minutos. Deixou o carro no estacionamento do hospital e entrou dirigindo-se a recepção principal. Ela estava instalada em Nova Esperança há apenas alguns meses mas já era conhecida ali, afinal aquele era o único hospital da região e sempre que algum paciente necessitava de cuidados hospitalares era para o Hospital Geral do Vale que ele era encaminhado e Julia já tivera alguns de seus pacientes internados ali, e também começara a frequentar as sessões clínicas do hospital que aconteciam uma vez por semana.
Fora Henrique quem a convidara na primeira vez que ela fora ao hospital, poucas semanas depois de Julia se instalar definitivamente em Nova Esperança, levando um paciente que acabara falecendo em decorrência de um infarto extenso mesmo com todos os esforços que eles empregaram para tentar salvar aquela vida. Naquela noite, os dois médicos tomaram café e conversaram por um longo tempo, e Henrique convidou Julia para participar das sessões clínicas que aconteciam sempre nas manhãs de quinta-feira, seria uma maneira da colega se integrar e conhecer os outros membros do corpo clínico do hospital e Henrique suspeitava que Julia seria uma contribuição valiosa para aumentar a qualidade das discussões, pois ela vinha de um ambiente universitário, era extremamente competente e praticava medicina de ponta. A idéia agradou Julia. O intercâmbio, a troca de conhecimento e de experiências era uma das facetas que ela mais gostava e fora uma das coisas que ela mais sentira falta quando deixara o Hospital Universitário e se mudara para Nova Esperança. Julia arrumou seus horários, organizou sua agenda e todas as quintas-feiras ela percorria os cem quilômetros que separavam as duas cidades e participava ativamente da sessão clínica do hospital.
Naquela manhã ela seria o centro das atenções, seria a relatora do caso clinico e lideraria a discussão, e todos os presentes esperavam que ela lhes trouxesse informações valiosas, era um caso raro, incomum na prática clinica do dia-a-dia, e Julia fora decisiva na resolução do mesmo ao aceitar ser a consultora e responder ao parecer solicitado por Henrique quando todo o corpo médico do hospital estava tendo dificuldades em entender o que acontecia com a paciente. Agora, pouco mais de um mês depois, a paciente estava completamente recuperada e Julia iria apresentar o caso na sessão clínica daquela manhã.
A médica sentia-se feliz e em casa enquanto caminhava pelos corredores largos e impecavelmente limpos do hospital. O chão era de granito branco e brilhava como um espelho, sendo constantemente supervisionado pela equipe de limpeza para que nenhuma sujeira maculasse a pureza do local. As paredes eram pintadas de um tom muito claro de amarelo o que dava um aspecto alegre e suave a enorme construção, numa tentativa de diminuir um pouco a angustia e o temor natural que as pessoas sentiam ao estar dentro do ambiente hospitalar. O cheiro de anti-séptico e éter impregnava o ar, o odor que para muitos representava o cheiro do sofrimento e da morte, para Julia era como um perfume delicioso era o cheiro da esperança, da batalha contra o anjo da morte. Uma cacofonia de sons conhecidos encheu os ouvidos da médica. Doutores sendo chamados pelo auto-falante, cadeiras de roda sendo empurradas, macas sendo levadas de um lado para o outro, o bip-bip dos monitores, a gargalhada de uma enfermeira, o gemido de um moribundo, o bom dia amigável e confortador de um médico, o telefone tocando insistentemente em algum local, o corre-corre da rotina diária... Tudo lhe era familiar, tudo lhe era precioso, ela sentia falta desta organizada confusão que era um hospital e por isto o convite de Henrique para participar regularmente das sessões clínicas fora prontamente aceito.
E ela ficou feliz ao perceber que continuava apaixonada por sua profissão, adorava tudo aquilo, o que a deixara enfadada fora a burocracia de exercer medicina numa cidade grande. Ali ela atuava de uma forma completamente diferente, tinha tempo para conversar com o paciente, tinha liberdade para escolher quando e como trabalhar. Ali, mesmo no centro nervoso de um hospital com recursos tecnológicos sofisticados o ritmo era mais lento, havia espaço para um bate papo no corredor, sempre havia tempo para um café, as pessoas se conheciam, se importavam e se preocupavam umas com as outras, como raramente acontecia num grande centro. Ninguém era anônimo, todos faziam parte da grande colcha de retalhos que era a vida social de uma pequena cidade. Era impossível caminhar, mesmo uns poucos metros, sem ter que parar para conversar com alguém, ouvir as novidades que circulavam pela comunidade, quem estava namorando, quem tivera bebês, quem morrera e até as fofocas mais proibidas, não ficavam de fora sendo cochichadas e espalhadas no burburinho que compunha a tradição das pequenas cidades.
Enquanto se dirigia para a lanchonete do hospital aonde iria se encontrar com Henrique, Julia repassava mentalmente sua apresentação relembrando da manhã há algumas semanas atrás em que estivera no hospital atendendo ao pedido de ajuda de Henrique para um caso complicado de falência cardíaca. Ele entrara em contato com ela por telefone perguntando se ela poderia dar uma passada no hospital para ver uma paciente e após um breve relato do colega Julia se colocara a inteira disposição para ajudar.
No dia seguinte ao telefonema ela fora ao hospital, e enquanto caminhava ao lado de Henrique pelos corredores e subia as escadas até o terceiro andar ele fora colocando Julia a par de todos os detalhes do caso. Era uma mulher de pouco mais de sessenta anos que havia sido atendida na emergência ao mesmo tempo em que o neto. O rapaz se envolvera em um acidente durante um rodeio em uma das cidades da região e acabara com uma lesão na coluna que o deixara paraplégico. A senhora, que assistia ao neto na arquibancada junto com a família, presenciara tudo. Seu garoto girando em cima do touro, um segundo, dois, e de repente sendo lançado para o ar, como se fosse um balão. E depois se embolando com o touro que furioso e atordoado pisoteava o peão estendido e imóvel no chão. E fora essa imobilidade que aterrorizara a todos, porque ele não estava tentando se desviar do touro? Enquanto os salva-vidas entravam na arena para segurar o touro e socorrer o jovem peão, sua avó sentira-se mal e também fora socorrida pelo serviço de emergência que estava a postos no evento. Ela fora levada para o Hospital Geral do Vale ao mesmo tempo em que o neto, e enquanto o garoto era colocado numa aparelhagem para realizar uma ressonância magnética a fim de verificar a extensão de suas lesões, a avó era levada para a sala de hemodinâmica e submetida a um cateterismo cardíaco. E embora os sintomas, os exames de laboratório e o eletrocardiograma falassem de um quadro de infarto do miocárdio, estranhamente, o exame das coronárias mostrava que todas as artérias do coração estavam livres. Nenhuma placa de aterosclerose, nenhum obstáculo no caminho do sangue que percorria livremente todos os caminhos alimentando de oxigênio e nutrientes os músculos daquela bomba poderosa e vital. E mesmo assim o coração da paciente estava enfraquecido, bombeando com dificuldade, executando com inegável sofrimento a sua função mais primordial, como se tivesse sofrido uma extensa isquemia, e a paciente estava em choque cardiogênico. A pressão arterial caíra perigosamente obrigando os médicos a levá-la para a UTI e iniciar o uso de medicamentos para auxiliar o funcionamento do coração.
Ao final de uma semana a paciente encontrava-se estável, a pressão arterial já era mantida sem o auxilio de medicamentos e as funções do coração começavam a se recuperar. O que os médicos que assistiam a paciente não conseguiam entender era o que causara aquele dano tão extenso. Como era possível uma paciente com todas as características de um infarto e todas as artérias do coração livres de entupimento? E mesmo agora que ela estava melhor a função do coração ainda continuava comprometida. A pesquisa que havia sido feita para doenças relacionadas a vírus e parasitas também não fora positiva. Eles estavam completamente no escuro, diante de um quadro grave de falência do coração mas não conseguiam entender a causa do problema. Fora Henrique quem tivera a idéia de sugerir que Julia fosse consultora naquele caso. Achava que por ela ter estado tanto tempo ligada a um hospital universitário a colega com certeza teria experiência com casos raros e para ele estava claro que eles estavam diante de um caso raro de falência cardíaca.
Eles chegaram ao quarto da paciente e Henrique cumprimentou a senhora idosa com gentileza para em seguida apresentar-lhe a Dra. Julia. A médica sentou-se no leito e tomou as mãos da senhora entre as suas, enquanto analisava o aspecto geral da paciente, catalogando mentalmente as primeiras impressões. Julia perguntou pelo neto, mostrou-se confiante na melhora do mesmo, estabelecendo os primeiros laços de uma sólida relação médico-paciente. Ouviu atentamente o relato da senhora idosa sobre tudo o que havia acontecido desde aquela tarde, em que seu neto se acidentara e constatou a melhora progressiva que a mesma estava apresentando. Preparou-se então para o exame clínico.
Abaixou a cabeceira do leito, ajudou a paciente a se deitar certificando-se de que ela estava confortável, despiu-lhe o roupão do hospital expondo o tronco e a barriga da velha senhora, cobriu-lhe as pernas com um lençol e posicionou-se a esquerda do leito. Permaneceu algum tempo observando o pescoço e o tronco da paciente para captar a existência de alguma pulsação anormal.
Deslizou a mão direita espalmada por todo o tórax procurando por batimentos ou frêmitos anormais que pudessem denotar crescimento do coração. Desceu a mão e apalpou cuidadosamente a barriga, apertando e soltando alternadamente em busca de sinais da presença de líquido em excesso no organismo, e desceu-as para as pernas a procura de edema.
Adaptou o estetoscópio aos ouvidos e aplicando a campânula no peito da paciente começou a auscultá-la. Movimentou o estetoscópio em varias direções, da direita para esquerda, de cima para baixo, no pescoço, ouvindo atentamente e com total concentração os sons tão familiares do funcionamento daquela bomba incrivelmente fascinante que era o coração, até sentir-se satisfeita. Ajudou a paciente a sentar-se e aplicou o estetoscópio nas costas para ouvir os sons da respiração. Terminou o exame, despediu-se da paciente e dirigiu-se a sala de prescrição acompanhada de Henrique para olhar os exames que haviam sido feitos.
Em cada andar do hospital havia uma sala de prescrição, o espaço fora projetado para o conforto e a praticidade dos médicos que frequentavam a instituição. Era uma sala ampla, com uma bancada que se estendia por toda uma das paredes e muitas cadeiras, onde era possível sentar-se para redigir as ordens que seriam aplicadas aos pacientes. Na parede em cima da bancada ficava um gigantesco negatoscópio, a caixa de madeira com lâmpadas embutidas era uma ferramenta essencial para que os médicos pudessem analisar radiografias, tomografias e ressonâncias. Ao longo de toda a bancada canetas, lápis, réguas estavam disponíveis para facilitar o trabalho dos que utilizavam aquela sala. Monitores de computador ligados a intranet do hospital permitiam que as prescrições fossem digitadas eletronicamente facilitando a vida do médico e evitando os problemas causados pela tão famosa "letra de medico", que era o terror da equipe de enfermagem. O acesso a internet era irrestrito permitindo aos profissionais que utilizavam a sala, a consulta aos assuntos de interesse. Um telefone estava disponível para contato com os diversos setores do hospital. Uma estante situada em outra parede continha um pequeno, mas interessante acervo de livros e revistas medicas de uso corriqueiro. Para o conforto e a socialização havia um sofá largo em frente do qual ficava uma televisão, uma pequena geladeira onde sempre se podia encontrar água e suco fresquinho, ou um sanduíche inadvertidamente esquecido por algum médico na atribulada rotina de plantão. E como era obrigatório e vital em todo hospital a importantíssima máquina de café. Aquele era um espaço democrático, ali era possível trocar experiências, colocar o papo em dia, consultar livros ou apenas descansar enquanto se tomava um café.
Julia e Henrique se instalaram na bancada analisando cuidadosamente todos os exames da paciente. Laboratório, radiografias, eletrocardiograma, ecocardiograma e então colocaram para rodar no computador o CD com o filme do cateterismo cardíaco. Enquanto analisava os exames Julia ia organizando mentalmente as suas impressões, confrontando em seu cérebro os resultados dos exames com o que vira e percebera ao examinar a paciente, como se estivesse montando um quebra-cabeças. No momento em que o computador iniciou a leitura do filme do cateterismo, ela já sabia o que esperava encontrar, e um discreto sorriso de triunfo se formou em seus lábios a medida que o contraste mostrava a imagem do contorno do coração da paciente. Ela identificou imediatamente. Estava ali, facilmente visível. Claro. Nítido. A imagem que lembrava uma armadilha para apanhar caranguejos ou como os Japoneses a chamavam Takotsubo. Aquela imagem era clássica. Não havia dúvidas e juntamente com a história da doença não deixava margem para erro, o que eles tinham ali era um caso raro de Síndrome do coração partido ou miocardiopatia de Takotsubo.
Julia revisou toda a prescrição da paciente, sugeriu alguns ajustes nos medicamentos e traçou algumas ordens. Relutou um pouco, mas acabou aceitando a solicitação de Henrique para que ela passasse a acompanhar a paciente. Ao final de dez dias a senhora idosa já estava em casa com as funções do coração em plena recuperação. Quinze dias após o trágico acidente com seu neto ela retornou ao hospital para realizar novos exames e a Dra. Julia considerou-a curada dando-lhe alta médica. E a partir daquele dia ela tornou-se paciente de Julia frequentando o consultório da médica em Nova Esperança para prevenção de novos problemas. Agora pouco mais de um mês depois de tudo aquilo Julia estava entrando no hospital para apresentar a sessão clínica do hospital e dividir com os colegas de toda a região do Vale das Flores todo o conhecimento aprendido com este caso raro e interessante.
Chegando a lanchonete do hospital Julia encontrou Henrique sentado a mesa ao lado de sua atraente esposa. A pediatra com o corpo compacto e os cabelos vermelhos como fogo parecia uma fadinha com seus olhos verdes e o nariz salpicado de sardas, Julia imaginava que as crianças deveriam encará-la como uma espécie de feiticeira ou como uma outra criança com quem elas poderiam brincar. Eles cumprimentaram Julia com carinho e ela se juntou a eles para uma xícara de café antes de dirigirem ao auditório do centro de estudos do hospital.
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